"Uma voz fala pelos seis milhões de judeus mortos; a voz não é de um sábio, nem de um poeta, mas de uma jovem como tantas e tantas outras".
Ilya Ehrenburg, jornalista e escritor soviético.
O “Diário de Anne Frank” que temos a nossa disposição em livrarias de todo o mundo é um relato emocionante da história de uma família judia que residia na Holanda quanto esta foi ocupada pelos nazistas, em maio de 1940. Os Frank, junto com outra família, os Van Daan e o Doutor Dussel, todos judeus, ficaram escondidos entre 1942 e 1944 no chamado “Anexo Secreto”, no antigo edifício em que o pai de Anne, Otto Frank, trabalhava, tendo em vista a perseguição dos nazistas aos judeus. Sendo considerado um dos maiores símbolos literários do holocausto, o diário está no Instituto Holandês para Documentação da Guerra (NIOD).
A veracidade do diário de Anne foi e ainda é muito contestada, principalmente por grupos neonazistas e anti-semitas. As afirmações de falsificação são mais uma tentativa neonazista de negar a existência do holocausto. Com o objetivo de comprovar de uma vez por todas a veracidade das páginas de Anne, o Instituto publicou em 1986 a chamada “edição crítica”, baseando-se em análises científicas que refutassem as alegações de falsificação. Essa edição comparava as três versões então existentes do diário: A – a original, conjunto de cadernos e folhas que Anne usou para escrever durante todo o período de residência no Anexo; B – uma outra versão, feita pela própria Anne, que começara a revisar seus escritos quando do apelo radiofônico para a preservação de diários, cartas ou qualquer documento da época da guerra, em 1944 (Anne tinha a intenção de publicar um livro ao fim da guerra, sob o nome de “O Anexo Secreto”); e C – versão modificada pelo pai de Anne, que recebera os cadernos de Miep Gies (uma das “ajudantes externas” do pessoal do Anexo) após ser liberado do campo de concentração em que estava e descobrir que suas duas filhas haviam morrido no campo de Bergen-Belsen. Miep recolhera e guardara os cadernos depois da invasão da Gestapo ao esconderijo com o objetivo de devolvê-los a Anne. Esta terceira versão foi dada à publicação por Otto em 1947, suprimindo passagens em que a menina tratava de sua sexualidade, fazia duras críticas à mãe e questionava o relacionamento dos pais. A partir da publicação, muitas traduções foram sendo feitas, peças de teatro escritas e filmes produzidos. Em 1995 foi publicado o que ficou conhecido como a “edição definitiva”, incluindo 30% do material que Otto Frank censurara na primeira versão publicada, a C. Recentemente novos trechos que não constam na publicação de 95, que fora comemorativa ao 50º aniversário de morte de Anne, foram revisados, mas uma nova publicação ainda não foi feita.
Anne começou a escrever seu diário em 12 de junho de 1942, ao ganhá-lo de presente pelo seu aniversário. A frase que o abre, “Espero poder confiar inteiramente em você, como jamais confiei em alguém até hoje, e espero que você venha a ser um grande apoio e um grande conforto para mim”, soa quase como um presságio do que está por vir. As provações que Anne teria que passar parecem implícitas em sua fala, embora ela não soubesse qual seria seu trágico destino, assim como o de outros milhões de judeus europeus.
A família Frank emigrou da Alemanha em 1933, quando Hitler subiu ao poder, para Amsterdã, onde encontrou relativa paz até 1942. As proibições aos judeus, que se iniciaram com a guerra e a ocupação nazista, eram inúmeras: todos deveriam usar uma estrela amarela bem visível, não podiam andar de bicicleta ou bonde, não podiam dirigir automóveis, tinham um horário fixo para fazer compras em lojas específicas, obedeciam a um toque de recolher, não podiam freqüentar teatros, cinemas ou praticar esportes publicamente e eram obrigados a freqüentar apenas escolas judias. Mesmo com todas as proibições, Anne descreve a situação como “suportável”, substituindo tudo isso por uma paixão por livros. No início de julho seu pai já fala na necessidade deles se esconderem e tudo vai sendo preparado para isso. Ao chegar à casa deles uma convocação, supostamente para Otto Frank, mas que na realidade era para a irmã de Anne, Margot, a menina mostra o primeiro sinal de medo; pensa em campos de concentração e prisões, mas tenta não se deixa abater. Isso porque o eufemismo da convocação, “força de trabalho” já era bem conhecido por todos, significando quase sempre “campo de concentração”. A família começa a fazer as malas tendo em vista o iminente perigo que correm, e no dia seguinte partem para seu esconderijo, já tendo feito a mudança de vários de seus bens durante os meses anteriores. O Anexo Secreto ficava no segundo andar do prédio em que Otto trabalhava, com uma estante móvel disfarçando sua entrada. Alguns dos colegas de trabalho de Otto sabiam e ajudaram na mudança: o Sr. Kraler, Koophuis, Miep e Elli Vossen. Estes personagens foram de grande importância para os moradores do Anexo, pois, além de manterem seu segredo, os ajudaram de todas as formas possíveis, com suprimentos, notícias, amizade.
O diário é de interpretação complexa, primeiro devido a idade de Anne, segundo pelo fato de ser um diário pessoal, e terceiro graças a todo o clima de tensão do esconderijo. Por ser muito jovem, Anne talvez não conseguisse entender muitas atitudes dos adultos, acabando por interpretá-las de uma maneira toda própria, por vezes estranha e maniqueísta demais. Por outro lado, a menina parece ter um nível de discernimento incrível e olhos bem abertos para os problemas internos e externos da casa. A maneira como critica a todos, descrevendo sua personalidade, seus defeitos, seus medos e suas qualidades, é acompanhada da relação adulto-jovem dentro do Anexo, onde os adultos acham os jovens tolos e os jovens se enervam com eles por causa disso. Ressalto também o fato de Anne mostrar o quão esclarecidos e até mesmo politizados eram os jovens da década de 1940 comparado aos atuais, mostrando que, independente da idade, eles não eram alienados em relação aos problemas do mundo. Anne lia muito e sempre se preocupou com sua formação, queria ser culta, inteligente, para conseguir alcançar o sonho de ser escritora e jornalista.
O segundo fator de complicação, o fato de ser um diário pessoal, nos faz pensar no foco que Anne dava aos fatos. É certo que de início ela pretendia apenas usá-lo como confidente, tratando-o pelo nome de Kitty (como se o diário fosse uma amiga), mas depois de revisá-lo fervorosamente em 1944 ela já pretendia lançá-lo no futuro, para que o mundo conhecesse o sofrimento judeu durante a guerra através de sua história. Ela parecia sempre querer ressaltar sua maturidade, e para isso criticava muito a mãe, a irmã e a Senhora Van Daan. Não é possível afirmar nada, visto que só sabemos quem era Anne através de suas próprias palavras.
A tensão existente na casa é um fator um pouco mais fácil de compreender. Os residentes não podiam fazer barulho durante o dia, pois o escritório no andar de baixo funcionava normalmente; alimentavam-se basicamente de conservas, sopas e durante muitos períodos passavam fome; viviam isolados, tendo que conviver todos os dias com os defeitos de todos os moradores, compartilhando um banheiro, dormindo desconfortavelmente, vendo o mundo através de uma janela apenas durante a noite, pois os vizinhos não podiam suspeitar de que ali vivessem judeus. A tensão física e psicológica pela qual essas pessoas passaram e o medo que sentiam de ser descobertos a cada dia é comovente no relato de Anne. Eles apenas ouviam as bombas da guerra explodindo do lado de fora, por vezes escutavam notícias pelo rádio ou recebiam a visita dos amigos, que sempre traziam notícias, mas a esperança de que tudo fosse terminar bem era forçada ao pensamento. Apesar de momentos de puro pessimismo, os moradores tentavam ao máximo não se deixar abater pelo clima de chumbo.
Para Anne tudo se torna mais fácil quando ela descobre um sentimento pelo filho do casal Van Daan, Peter. Além da companhia de seu diário, ela agora tinha a de Peter, pois todos os outros moradores do Anexo não lhe agradavam por algum motivo, exceto talvez seu pai. O livro todo nos leva a uma análise psicológica de cada personagem, da relação entre eles e da própria situação em si. É difícil imaginar-se passando por isso, no entanto, muitos passaram durante a guerra e, como os moradores do Anexo Secreto, acabaram por ser descobertos e presos. Anne Frank simboliza de maneira bela e triste esse sofrimento, questionando-se sempre sobre a sanidade dos homens que fazem inocentes de bode-expiatório para os problemas vigentes.
A última página do diário é do dia primeiro de agosto de 1944. Sabe-se que à 4 de agosto a Polícia de Segurança alemã entrou no escritório e obrigou Kraler a revelar a entrada para o esconderijo. Os oito moradores foram presos, e após passarem um tempo no campo de Westerbork, foram mandados para Auschwitz. O Anexo foi saqueado, tendo os policiais levado quase tudo de valor que havia por lá, mas não se importando muito com as páginas de Anne. Margot, sua irmã, e a própria Anne foram mandadas para o campo de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde morreram de tifo em março de 1945, pouco antes da liberação do campo pelos ingleses. O único que se salvou foi mesmo Otto Frank té hoje não se sabe de quem foi a denúncia que levou os moradores do esconderijo a destinos terríveis, sendo contada a história de uma voz feminina ao telefone, e a possibilidade de ter sido um amigo de Otto, Tonny Ahlers.
Hoje existe uma biografia de Anne Frank, escrita por Melissa Müller, além de várias fundações em sua homenagem em diversos países. O próprio Anexo Secreto, em Amsterdã, virou um museu, apesar da mobília original da época ser muito pouca, sendo a maioria reconstituição. A adolescente escritora é mundialmente conhecida, sendo uma das maiores personalidades representativas do holocausto. São relatos como o de Anne que nos permitem um estudo profundo com tom de denúncia sobre os crimes praticados contra diversos grupos considerados inferiores pelos nazistas (doentes físicos e mentais, gays, testemunhas de Jeová, judeus, etc), que os subjugaram até a resolução da “Solução Final” para o problema dos judeus: a morte nas câmaras de gás, que só terminou com o fim da guerra. O número de mortos é proporcional a sistematização da maldade dos envolvidos no que ficou conhecido como um dos piores genocídios da história.
Bibliografia: “O Diário de Anne Frank”
Revista Veja de 21/10/1998
www.annefrank.org
www.morasha.com.br